domingo, 14 de dezembro de 2008

No "suburbiu" de mim


- Bom dia Seu Lima, tudo bem?
Seu Lima era um senhor nos seus 60 e poucos anos, mas aparentava ter bem mais devido o uso extremado de nicotina. Ele sempre andava com dois maços: um dentro do bolso, esse era bem amassado, e o outro, reserva, guardava debaixo da camisa na altura do peito esquerdo. Era engraçado ver aquele coroa magro com aquele retângulo no peito.
- Oba garoto! Como é que estamos?
Possuía uma aspereza na fala e uma dificuldade na pronúncia das palavras que essa pequena frase, fez-me pensar na trajetória dela sofrendo todos os embargos para passar pelo aparelho fonador até ser expelida. Coitado!
- Vou bem Seu Lima!
E pensei com meus botões: como é que estamos? Como é que estamos? Eu estou bem, não como cigarros! Mas, eu não poderia ser grosseiro com ele, ainda mais que sempre ajudou minha mãe no bicho, seus palpites eram certeiros.
- E você?
- Caminhando devagar! E riu sua risada “asmática” seguida de pigarros e saiu.
- Dona Maria, sempre bonita héin!
Não sei porque falo isso para ela, só anda de rolinho na cabeça e maltrapilha, não que seja miserável, mas no dia-a-dia só andava mal vestida. Miserável de espírito.
- Oi meu filho, você e suas gentilezas.
- Quer alguma coisa da padaria?
Tomara que ela não me peça nada, da última vez quase fiz as compras do mês, está certo que tinha dado o dinheiro, mas... Peso é peso e vice-versa! Pensando nessa frase dei uma leve risada de canto de boca pensando no vice-versa. Havia escutado isso em algum sofá de programa de televisão.
- Quero não meu filho, agradicida.
Continuei minha caminhada até o meu destino. Neste momento passa um grupo de estudantes da Escola Pública indo para aula e fazendo algazarra na rua. E rapidamente, fiz um link com o Seu Lima, pensei nele sentado naquela carteira de estudante fazendo bicho. Que contraditório! Dois universos totalmente diferentes unidos por um mobiliário escolar. E imediatamente pensei no futuro daquelas crianças. Quando elas estavam em grupo era uma felicidade só, mas quando iam sozinhas... Pareciam que iam digladiar com o aluno mais forte da escola; sabe aquele “te pego na saída”?! Então, deve ser difícil estudar numa prisão física e mental.
Continuo a minha caminhada ao meu destino. As casas, os sobrados, o comércio e as pessoas são as mesmas. Só Seu Imbrain que não é mais o dono do boteco, passou o ponto. Corvelo comprou a loja de ferragem do lado e, com essa, já possui três estabelecimentos no bairro. Jorge D’agulha continua dormindo depois do almoço e abrindo o armarinho só depois das 14:00 h. A Kombi do Seu Messias continua fazendo fretes. E apesar das mudanças de “gestores” nada muda, tudo continua com a mesma cara. Zefa continua vendendo sacolé no verão. Tia Cida continua vendendo utensílios domésticos, cosméticos possíveis e inimagináveis etc. de todas essas revistinhas. E sem contar com as reuniões vespertinas que sempre terminam com senhoras felizes e sempre repletas de sacolas.
As casas de esquinas continuam grandes, porém num crescimento verticalizado, no qual gerações e mais gerações de familiares habitam um único lar subdividido por andares. O cinema virou igreja. O campinho virou depósito de entulhos oriundo desse brotamento habitacional. O coreto não existe mais. O Fusca do Seu Élson sempre brilhando como uma estrela solitária. O Cardoso casou e foi para o Norte e eu continuo a minha caminhada ao meu destino.
Em falar em destino, o que é destino? Será que realmente existe esse obscurantismo místico ou somos nós os atores principais desse grande ato cênico, vulgarmente, denominado de Vida.
Andaremos sempre para um destino que por mais que distanciarmos de nossa origem, saberemos sempre do ponto que partimos, por mais que você não queira; essa é a sua procedência, o seu carma. “Uma vez Flamengo, sempre Flamengo...” Já dizia Lamartine.
Vaguei pelo mundo, andarilho de mim, porém por mais que corra a sombra é projeção do meu corpo, eu sou isso. Sou o copo de geléia com esmalte vermelho no fundo. Sou senhores e senhoras alcoviteiros nos portões e seus qüiproquós. Sou o bicho da manhã, da tarde e da noite. Sou o samba de raiz, o churrasco e a cerveja. Sou as peladas de rua, os blocos de carnaval, o bom dia, o boa tarde e o boa noite aos vizinhos, a resenha da madrugada e as zombarias aos amigos.
No mirante da Vida quero descer e pegar esse trem com destino ao meu seio familiar e aos seios deleitosos da fidalguia suburbana. Doces deletérios!


Arte: Eduardo Martins

15 comentários:

Anônimo disse...

Eduardo,

Fiquei aqui pensando no que seria o "destino"? Como de praxe, fui dar uma olhada no "pai dos burros", mas minha leitura se perdeu em meio às letras e percebi que o destino não pode ser definido nem mesmo enquanto palavra. Fechei o dicionário e fiquei divagando sobre assunto, diria que estive sonhando acordado. Quer saber? Ninguém conhece o seu destino ou de outrem, simplesmente porque o amanhã pode não existir para nós. O máximo que podemos fazer é traçar um caminho, mas o que vamos encontrar nessa estrada é uma incógnita...
Abraços,
Luiz Vasconcellos.

Daniel Salles disse...

Opa, cenário de subúrbio carioca! Nasci em São Cristóvão, deu pra ver direitinho a cena...hehehe!

Muito bom!

Por falar em subúrbio, já leu '20 Contos e uns trocados', do Ney Lopes?! A intenção é parecida!

Abraço!

Anônimo disse...

lembra-me o trágico fim do ex- marido da Suzana Vieira, da Baixada, criança e adolescente, conheceu as drogas, o glamour, mas seu ser de dentro, ainda era o mesmo, e, em sua morte, seus vizinhos é que foram testemunhar, lembra eu mesmo, filosofo, e-x-frequentador da Lapa, mas ainda assim, vendo novela e morador de Madureira, ainda assim, vendo Raul Gil, ainda que leia Manoel de Barros.
***
Amargo e singelo, ao mesmo tempo, esse seu conto. Lembra-me esses loucos da UERJ, que arrotam Marx com um passado de Didi Mocó!!!
***
Seu conto é cOisa de gente "intelecto" que sabe "ler" seu povo e tem suas origens nas veias, por mais que seja bombardeado pelo pensamento de intelectuais europeus mortos.

ASS.: Wanderson Silva de Souza

Anônimo disse...

Olhe meu filho eu digo para você que existe destino sim, viu?! Eu sou a senhora do meu destino! Sai de Belém de São Francisco com 5 filhos atrás daquele traste do meu ex-marido e no meu destino estava escrito que ia conseguir erguer meu imperio em Vila são Miguel.. eu também sabia que ia encontrar a minha linda a Lindalva que aquela filha de uma rapariga mal nascida da Nazare robou de mim
Olha meu querido, eu, giovanni mais Dirceu gostamos desses seus escritos, viu. Giovanni ta até te convidando para uma buchada de bode aqui na quadra da Unidos de Vila São Miguel.

Beijos no coração viu meu lindo e venha aqui para eu te apresentar a minha liiinda a minha Lindalva

fique com deus

fab disse...

Seja pela mão do destino ou não, se eu continuar fumando dois maços por dia acho que vou acabar como o Seu Lima.
Bom conto, gostei do estilo.
E você tem razão, muita gente precisa da miséria do outro para manter o nível de vida e o poder. Principalmente poder.
Vou linkar teu blog pra ler outras postagens mais tarde,
abraços.

fab disse...

E o nome do blog é ótimo. Conheci o trabalho de um "stickeiro" de SP que tem um projeto chamado "projeto chã". Não sei você conhece.

Anônimo disse...

Muito bacana teus textos. Estou lendo todos com calma.
Também vou linkar teu blog para ler sempre as novidades.
Abraço libertário!

Celita disse...

Lembra a história de amigo meu que se tornou um grande escritor,depois de muitos anos pegando trem,indo à padaria pra vizinha e comprando sacolé na tia que mora na casa grande de esquina, que tem um orelhão na frente,perto da casa que vende avon!ahuahuahaua
Conheces?!

Axé Neguim!

Fátima disse...

ah o subúrbio!
tão bonito e modesto...

***

Bom Natal para você também! Apareça mais vezes no meu cantinho...

beijos

Anônimo disse...

aahhhh..
A Celita ja roubou o q eu ia escrever!!!
uaheuhaeuahuehuaea

mas ao mesmo tempo em que fui submetido a ver a cena descrita, tbm lembrei-me dos nossos tempos de pre-vestibular onde matávamos aula pra jogar sinuca no bar da esquina e Eduardo falava da rua onde uma senhora vendia Avon, um senhor vendia Pipa e sacolé no verão, a casa grande de esquina com um orelhão em frente..

agora vejo que todo esse meio tempo que passou, só fez bem à sua escrita meu grande amigo.

um grande amplexo amigo, Afilkiss!!!

Anônimo disse...

Subúrbio do latim suburbiu. Sub-urbe. Filho bastardo da Urbe sobrevive distante de sua mãe. Matéria-prima de sambas, artes, contos e preconceito. O personagem ao tornar-se uma cidade busca elementos que preencham e dêem significados a sua existência e retoma as suas origens.
E viva os representantes dessa fidalguia!

Ebrifestante ;D disse...

O meu lugar, passado que vive em mim, está inscrito no meu corpo, na minha alma, no que sou. Posso esquecer-me dos lugares por onde trafeguei, as pessoas que conheci, posso ignorar (e ignoro) a implacável divindade que é o destino, nascido da Noite e do Caos com toda sua atmosfera de fatalidade, inexorabilidade, trágica inflexibilidade. Só não me esqueço de onde eu vim, porque trago comigo o doce afago do samba da tarde acompanhado da comida no quintal, é meu modo de viver de ser, o meu lugar...
Lindo conto Edu! Parabéns mais uma vez!

Mari Perséfone disse...

Maravilhoso!
Quando achei o João Nogueira na foto, achei melhor ainda! rs

bjks

Anônimo disse...

´´ Sou o copo de geléia com esmalte vermelho no fundo. Sou senhores e senhoras alcoviteiros nos portões e seus qüiproquós. Sou o bicho da manhã, da tarde e da noite. Sou o samba de raiz, o churrasco e a cerveja. Sou as peladas de rua, os blocos de carnaval, o bom dia, o boa tarde e o boa noite aos vizinhos, a resenha da madrugada e as zombarias aos amigos.´´

AMIGO, É IMPOSSÍVEL LER ISSO E NÃO FICAR EMOCIONADO. PASSA UM FILME DA INFÂNCIA....
PARABÉNS!

Anônimo disse...

"As casas de esquinas continuam grandes, porém num crescimento verticalizado, no qual gerações e mais gerações de familiares habitam um único lar subdividido por andares. O cinema virou igreja(poeirinhaaa!!). O campinho virou depósito de entulhos oriundo desse brotamento habitacional. O coreto não existe mais(viva César Maia!). O Fusca do Seu Élson sempre brilhando como uma estrela solitária (berço alvinegro)."
Somos os Anais da sociedade, que bom !
Narrativa perfeita !