sábado, 14 de março de 2009

O sapato branco


Era quarta-feira, noite de verão, aquele ar parado, e uma sensação térmica bem termal. Era por volta de umas 21:00 horas e as crianças ainda brincavam nas ruas, e por conseqüência os pais aglutinavam-se em volta dos portões a conversar papos descompromissados, época de férias. O tempo quente, apesar de ser desagradável, causava um fenômeno quase extinguido, que eram as cadeiras nas portas e conversas que adentravam a madrugada. O subúrbio é assim, tudo é tão devagar para nós a violência não tem a mesma demanda de outros lugares mais avançados; é certo que algumas eventualidades ocorriam, porém eram apenas eventualidades. Assaltos, assassinatos e a passagem de algumas hordas de bárbaros que eram bem esporádicos. (...)
Até chegar na casa de Bira demorava uns 5 minutos, como estava cansado cheguei lá por volta das 21:15 minutos. Toquei no 305 e até atender foi o tempo de passar por mim um rapaz com um grande afã e pressa. Aquela perturbação energética e o vácuo de ar que ele proporcionou no pequeno corredor da portaria, chamou-me a atenção e como uma imantação meus olhos encontraram com os pontos mais marcantes de sua aparência que eram seus óculos escuros e seus sapatos brancos. Ao passar por mim, virou-se e olhou-me com uma expressão indagadora e sôfrega. Entendi que não deveria estar ali naquele momento, mas precisava tratar de negócios com Bira.
Pelo interfone apresentei-me, subi as escadas até o terceiro andar e escuto de dentro do apê de Bira um balbuciar alto, porém não havia entendido o que ele disse. Escuto passos fortes e a porta abre depressa.
- Porra, falei para você entrar e você aí parado que nem um babaquara.
Na verdade ainda estava estatizado por causa daquele encontro súbito, e o vácuo de ar da porta ao se abrir remeteu-me a mesma sensação da passagem daquele rapaz. Depois do xingamento que era de praxes veio um abraço seguidos de pancadas estaladas nas costas e uma gargalhada alta e curta como um grande estampido.
- Gostou do babaquara? Li num livro, acho que babaca deve ser uma forma sincopada de babaquara, não é?
Aquela pergunta trouxe-me ao mundo terreno e foi isso que me fez entrar em seu apartamento. Ao entrar, não me espantei com a desarrumação já que ela não era efêmera, mas mesmo assim tive que comentar só para irritá-lo.
- Não entendo como você consegue deixar tudo tão desarrumado com tanta perfeição. Deve dar um trabalho...
Gargalhou sua gargalhada estampida e curta, dessa vez, seguida de um alto e único soluço. Acendeu um cigarro e abriu uma cerveja. E desatamos a conversar sobre nossos negócios que eram ainda incipientes, contudo bastante promissor. Quando terminamos de falar de trabalho começamos a falar sobre futilidades e a escutar música. Foi quando perguntei sobre o rapaz no qual eu havia visto.
- Tá virando viado? Perguntando por homem?
A minha expressão facial revelou que não era bem essa minha intenção. Como ele me conhecia desde as primeiras séries escolares, parou com a zombaria e num tom diferente retomou o diágolo.
- Por que, cara? O que houve?
- Não sei, quando ele passou por mim senti uma coisa estranha.
- Sei lá quem é esse rapaz, aqui no prédio só mora velho e tem apartamentos que tão fechados há anos.
Fez-se um silêncio, que para mim, de tão alto que era chegava ser insurdecedor ao ponto de uma força interna tragar os meus pensamentos que estavam pairando no ar, desliguei-me daquele plano e fui para o plano da minha memória e vi, novamente, aquela cena que agora está tornando-se mais macabra do que era. A conversa definitivamente acabou, aquele silêncio de elevador que se assemelha muito com a de uma fila de banco era fato.
- É malandro, tá na hora de levantar o acampamento. Disse já levantando-me e espreguiçando. No relógio já eram 3 da manhã.
- Então tá bicho, amanhã a gente se fala.
Eu mesmo abri a porta e em seguida ele fechou. Desci as escadas ao som do movimento da chave na lingüeta da fechadura rodando em movimentos sincronizados. Quando chego no segundo andar, deparo-me com um par de havainas e um sapato branco. Primeiramente, aquele sapato chamou-me atenção pelo fato de vê-los nas ruas é uma raridade, a não ser no carnaval quando ele é utilizado para compor o arquétipo malandréu, mas depois associei com o rapaz em que tinha visto mais cedo. Subitamente veio-me um calafrio seguido de uma estatização que durou segundos, mas que para mim fora uma eternidade. Sai da inércia e comecei a andar vagarosamente e com os pés calados. Ao passar pela porta senti um ar enigmático e quente, típico de uma presença humana, e com isso resgatei as últimas forças de uma pessoa que estava acordada até às 3 da manhã e desci o restante das escadas num fôlego só.
(...)
Às 10:00 h, acordei com uma leve dor de cabeça, tomei um banho e fui tomar um pingado na padaria. Ao término, fui para a casa de Bira, pois íamos em Madureira comprar alguns aviamentos para a confecção. Chegando lá, subi as escadas receosamente, passei pelo 205 e não vi o par de sapatos brancos e nem o de havaianas, continuei o meu labor rumo ao 305. Toquei a campainha e de imediato vem Bira atracando-se com um pedaço de pão.
- Entra aí e me espera tomar café.
Sua frase era praticamente inaudível e de difícil interpretação. Então associei que era para entrar, até porque ele não iria deixar eu plantado na porta, e espera-lo tomar café. Sentei na sala e fiquei a esperar, para amenizar a sua delonga peguei alguns jornais que estavam espalhados pelo chão e comecei a ler. Li algumas notícias do Flamengo, o horóscopo e alguns quadrinhos; nada de substancial. No meio do bolo de jornais, encontro um antigo que na capa principal é uma reportagem sobre um grande acidente de avião que acontecera no ano em que meu tio morreu. Apesar de não ter conhecido, por ter nascido anos depois, tenho um grande pesar pela sua morte; deve ser mais pelo os que ficaram e ainda sentem a sua falta. Aquele jornal ficou na minha mão um bom tempo. Até que ao vagar com os olhos por ele, vi uma nota de rodapé que dizia o seguinte:
-“Em Brasília o crime do colarinho branco, e no subúrbio carioca o do sapato branco. Pág. 12.”
Meu coração começou a palpitar com extrema ligeireza, e quando chego na página 12 vejo uma grande foto com um rapaz de olhos claros, sentado numa cadeira, numa posição bem descompromissada, na qual suas mãos estavam atrás da cabeça e suas pernas estavam esticadas e cruzadas, estava sem camisa e no ombro estava pendura uma blusa estampada, e nos pés um reluzente sapato branco. Ao seu lado uma jovem em pé, com uma das mãos na nuca do rapaz e a outra na cintura, vestia uma blusa branca com uma saia preta e nos pés havaianas. E na matéria estava a seguinte reportagem:
“No subúrbio carioca, acontece mais uma tragédia. Deu entrada no Hospital Carlos Chagas, nesta quarta-feira, um casal de namorados. O jovem M.J.S. teve seus olhos arrancados pela namorada ciumenta e veio falecer de madrugada; já a jovem após de cometer o delito suicidou-se. Segundo o laudo dos peritos...”

6 comentários:

Anônimo disse...

305................familiar,interessante,convidativo,charmoso,inteligente,enigmático e tantos outros adjetivos me remetem a essa estranha combinação de números.Sinceramente,que presentão vc deu á seu amigo nesse conto! E indiretamente a mim também,pois a cada nova linha que aparecia,um sorriso a mais,uma lembrança a mais do quão encantador e deliciosamente maravilhosa é essa pessoa. Obrigada por fazer parte da vida dele, vc sabe que é importante e deu ao conto o toque que ele gosta.
Simplesmente........perfeito!
Bj grd!

Camila Barbosa disse...

Eita..
Adoreiii..rs
conseguiu me prender e ainda me gerou alguns arrepios.. rs
Ah, já li Feliz Ano velho, é bem bacana mesmo.. rs

Beijos

Anônimo disse...

Eduardo,
Em primeiro lugar, deixo registrado que gostei da alteração na arte do blog, ficou mais "gostoso" de ler, se é que você me entende.
Com relação ao conto, não sei de nada, não vi nada, nem ouvi nada. É melhor assim, não quero ser chamado como testemunha...
Abraços,
Luiz Vasconcellos.

Denise Ravizzoni disse...

Retribuindo...

Achado de Anis disse...

Esse não olha p/ mais ninguém... somente capim pela raiz. Esse amigo de Bira sofre de "posmonição".
Deu medo, porém vamos neologizar.
abraço

Anônimo disse...

Às vezes vemos coisas que ninguém vê ou que passa despercebido. Acho q essa é a diferença de um artista p/ um ñ-artista. E quando digo artista falo do pintor, escritor, ator... Será que as pessoas mediúnicas são artistas?