sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Verde-bandeira ou Caixa de Pandora


– Quinze para as oito!
– Obrigado!
– Aleluias!
– Glória, glória, glória...
– Puta que pariu!
– Três. Quatro. Um. Lona!
– BALA É DEZ, BALA É DEZ!
– Próxima estação Engenho de Dentro, estação de transferência para os ramais...
Soltou meia pessoa e subiram 20.
Dizem os evangélicos que ela tinha entrado em transe, mas com aquele calor todos ficaram em dúvida diante daquele diagnóstico. Paulinha era uma menina anoréxica por falta de opção. Sonhava em não ser modelo, de ignorância e da falta de esperança. Andava de trem para ir à escola. Na noite anterior viu o muro de sua casa virar uma grande escritura em braile, que dizia: “Aqui jaz a esperança”. As autoridades locais deslocadas não conseguiram captar a mensagem de longe, pois só quem é da área que sente, que tateia. O calor, a gritaria, a fome, a preocupação e o apagão. Paulão além de coagir os camelôs, ajudava na remoção de baixas que a viagem proporcionava.
O trem segue viagem e passa pelo Méier, sem parar, e da porta que estava aberta...
O guarda limava. Os felizardos que passavam no processo seletivo eram socorridos pelos Deuses de branco. Bradou:
– O dotô avisô que só entra quem tiver sangrano héin!
Uma agitação e uma senhora no auge dos seus cento e poucos quilos esperneia:
– Ora vejam, Liquinho tá com a perna quebrada, não tá sangrano e vai ser atendido...
Outro tumulto, um princípio de briga, e nessa efervescência Paulinho consegue sorrateiramente entrar. Já na sala do médico, que de cabeça baixa estava e de cabeça baixa ficou, anotava alguma coisa. Falou que estava com dor no corpo, muita febre...
– Isso é uma virose, tome antibiótico...
– Mas...
– Passar bem, PRÓXIMOOOO!
Com a receita em mão, foi pegar o antibiótico na farmácia do próprio Hospital, e para o seu não espanto o remédio estava em falta. Saiu de lá revoltado. O médico nem o examinou, só sabia que ele era homem pelo seu timbre de voz, nem olhou para cara dele. Da mesma forma que entrou ele saiu, com dor no corpo, febre e agora depressivo.
Paulo já não sabia qual era o seu suor, parecia até que estava jogando a sua rotineira pelada de domingo, mas dela restara somente as dores no corpo. Aquele suor era do trem, de segunda-feira. Uma mão na chupeta e a outra segura uma pasta. A mão da chupeta portava um relógio que servia de consulta para os que estavam perto, e para os que estavam longe somente as consultas verbais mesmo:
– Cinco para as oito!
– Obrigado.
– Próxima estação São Cristóvão estação de transferência...
Descem alguns, ficam outros, os remanescentes. O trem retoma, avança e antes de chegar no terminal, dá uma parada habitual demorando mais aquele fardo.
Paula que se apoiava numa perna só em cima de um salto alto já estava exausta, já tinha gasto praticamente toda a energia reservada para o trabalho de secretária de um consultório dentário.
- Estação Central do Brasil, estação terminal, desembarque por ambos os lados.
A grandiosa “viagem ao centro da Terra” Carioquilis nos revela as profundezas subumanas, sub-remuneradas, subnutridas, subservientes e submersas numa praia sem mar, de somente areia. A viagem ao centro da “terra”. Quem cava acha o tesouro ou afunda-se mais ainda.
Paulos, Paulas, brasileiros e cariocas que tem em comum: a esperança.


*foto original: José Cruz / ABr


Revisora: Mariana Lima
Arte: Laerte Heredia

20 comentários:

Anônimo disse...

A esperança é um inseto ortóptero, tetigonióideo, de antena setácea, geralmente mais longa que o corpo, pernas espinhosas, e ovipositor ensiforme pousado na sua janela.

Laerte Heredia disse...

BRAVO! exelente meu amigo!
parabéns!

Anônimo disse...

Só que eu tenho a dizer é PARABÉNS ... vc escreve muitissimo bem ..

Agora deixa eu tirar um duvida .. isso se baseia na sua realidade??

Viajem de trem, camelos gritando .. etc..etc..

Abç.

Unknown disse...

Parabéns, seu texto é muito bom, todos na verdade.
bjsss

Celita disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Celita disse...

"Na noite anterior viu o muro de sua casa virar uma grande escritura em braile, que dizia: “Aqui jaz a esperança”." Belas sacadas.. Irônico,sarcástico,mas deixando claro o seu recado.
Fico feliz em ler...
Um Axé mermão!

Unknown disse...

Sensacional!!!

Hasso disse...

muito bom o blog
parabéns

Pablo Mateus disse...

a minha é a de verde

Anônimo disse...

Olha baixinho, gostei muito do seu texto! me identifiquei muito com a Paula...parece comigo quando morava em Bento Ribeiro(só q eu era anorexica por opção e trabalhava em uma produção chamada "amor estranho amor)
E esperança é fundamental!eu tive e consegui pegar o pelé e o senna e assim subir na vida....bom...fica a dica!

beijo

:P

Anônimo disse...

Fala, Eduardo!
Pois é. O trem nada mais é do que uma sala de aula da escola da vida. Cada um com a sua história, com seus problemas e com suas mentiras. Mas é interessante notar que apesar da proximidade entre os passageiros, proporcionada pela superlotação, todos permanecem absurdamente distantes. Enxergam os demais como parte integrante do vagão... pois é, meu amigo, é aí que a esperança morre... quando o piloto automático de nossas vidas nos impede de olhar para o próximo e dizer: "bom dia", independente de conhecermos a pessoa ou de acharmos que é realmente um dia bom... até nisso andamos economizando... em tempos de crise, a recessão de afeto ainda fala mais alto...
Abraços,
Luiz.
P.S.: agora me vem à lembrança a música "Chegadas e Despedidas", do famoso Bituca. Vale a pena ouvir...

Daniela Lima disse...

é a triste realidade de muitos, o filho de uma amiga se machucou, ela foi para um hospital do estado, ela com o filho machucado, desespero de mãe e o médico berrou com ela!!!Pior, nem receita deu!!!
triste...revoltante

Daiane Santana disse...

Bem legal seu blog!!

Sucesso :)

Anônimo disse...

A gente pra viver bem nesse mundo tem que ser um pouco mais inteligente...
É como já dizia meu tio Vicente: "Segura a nega, meu"!

João Gilberto Saraiva disse...

Conseguiu captar bem o clima suburbano. Na verdade não conheço o Rio de Janeiro, mas já rodei em outras praças com realidades parecidas.

Ebrifestante ;D disse...

A vida segue na rotina dos gestos mecânicos do vendedor de balas, nos repetitivos e negligentes diagnósticos descritos nos receituários absortos na inebriante neblina hodierna. Milhares de viroses por dia, doses e doses no bar da esquina, mais uma estação, mais um bairro, mais uma vez o martírio tablóide. Um instante quando percebido, revela as peculiaridades e semelhanças dos destinos que se cruzam e descruzam no baile das estações, esse comboio de cordas, diversos corações, cheios de necessidades, desejos, sonhos... Alheia a tudo e a todos a vida segue, a vida apenas, o destino presente, cotidiano, inexorável, sem mistificações... Segue...

Agora sim o comentário: Muito bom Edu! rs

João Gilberto Saraiva disse...

Doutor, depois comente o novo texto do meu blog. Gosto do seus comentários. Valeu

Giovani Iemini disse...

14 de dezembro tá chegando.

Eduardo Martins disse...

Caixa de Pandora é uma referência à mitologia grega. Pandora, a 1ª mulher, recebeu de Zeus uma caixa onde estavam guardados todos os males do mundo. Ao casar-se, seu marido, Epimeteu, curioso, abriu a caixa. Todos os males escaparam, espalhando-se pelo mundo. Restou no fundo da caixa apenas a esperança.

Ricardo Valente disse...

Tava lendo os antigos aqui... muito bom tudo.
Gostei tb do poeminha lá no meu, hehehe
Vlw!
Abração!!!